Faz tempo que deixei de ser criança, faz ainda mais tempo que não me vejo como uma. No entanto, quando busco pelas recordações de outrora, revivo sensações tão próximas... Hoje, pensando comigo mesma, comecei a recordar tudo aquilo que já fiz e que agora me parece tão surreal. No fim de contas cá dentro não moram apenas conhecimentos adquiridos de livros, jornais e enciclopédias. Eu tive, em tempos, uma vida que para muitas crianças de hoje lhe parecería ridícula. Ridícula... ridícula não. Para mim foi a melhor infância, uma infância de saber experimentado.
Eu corri montes, rasguei as minhas pernas em bicos e silvas e caí sobre pedras. Eu andei descalça pela rua com uma fatia de pão acabado de cozer na mão. Agarrei com as minhas mãos em tripas de porco em inúmeras matanças. Como eu adorava os dias de matança, aquele cheiro a carne misturado com o da terra ao nosso redor, a camaradagem, o sabor da carne acabada de sair do fogo...
Em tempos também fui capaz de ir alimentar as galinhas e de lhes ir roubar os ovos. Como se elas se importassem... pelo menos eu não me importava nada de comer aqueles belos ovos usados em bolos deliciosos. Ah! E sim, eu também raspei a massa dos bolos com os meus dedos e inocentemente os levei à boca. Tomei banho de mangueira quando o calor do verão me ameaçava o corpo. E tomei banho de ribeira quando havia tapetes para serem lavados. E tomei banho de tanque quando haviam amigas para brincar.
Bastante cedo aprendi a cortar o meu cabelo, e bastante cedo aprendi que se não queria parecer um rapaz não o deveria cortar sozinha. Também aprendi a colher o fruto da árvore, a limpá-lo no meu vestido e no mesmo instante comê-lo. Soube o que é apanhar alfarrobas. Soube o que é apanhar amêndoas, pegar numa pedra, abri-las e comê-las. Fui capaz de trepar árvores atrás de gatos e fazer delas o meu castelo.
Infância perdida? Sim, mas não a minha. As crianças de hoje é que estão a perder todos estes e outros momentos que uma vida pode proporcionar. Provavelmente os meus filhos também perderão muitos, mas vão saber de onde vêm realmente os ovos e o leite.
Vão saber que a verdadeira felicidade está nas coisas espontâneas e simples da vida.